EUCLIDES E A REVOLUÇÃO FRANCESA

 

Não há dúvida que a Revolução Francesa constitui o evento histórico mais importante dentro do quadro de referências de Euclides da Cunha.

Não é o único, é claro; outros há que vêm e revêm em sua prosa. Num discurso altamente alusivo, que é o seu, não faltam menções a outros eventos, sobretudo àqueles ligados à própria formação militar do autor. Volta e meia, aparecem lembranças das guerras napoleônicas, das campanhas de Alexandre o Grande ou de Júlio César, ou mesmo de mais remotas façanhas bélicas na Antigüidade. É quase um segundo grau do discurso do Euclides de Os Sertões o falar de passagem em "Cápua invertida" ou em "forcas caudinas". O leitor inocente não avançará na leitura enquanto não esclarecer o conteúdo dessas alusões.

Assim, vai ter que tomar conhecimento do que aconteceu em Cápua, quando o general cartaginês Aníbal, freando o ímpeto invasor que o trouxera das costas da África através da Espanha visando a tomada de Roma, pára e fica naquela cidade, a segunda, em tamanho, da península itálica. Ali foi perdida a Segunda Guerra Púnica, dali Aníbal não passou, embora já estivesse pertinho de Roma, seu objetivo. Ali perderá a cidade e a guerra, no ano de 211 a.C., em que entrega Cápua; e nunca chegará a Roma. Resta saber que relação há, e invertida, entre Cápua e Canudos. Aqui foi o sítio que parou, o sítio efetuado pelas tropas do Exército, que cercaram mas não conseguiram tomar o arraial cercado. Num caso, o sitiado não conseguiu avançar; no outro, é o sitiante que não avança. Se Aníbal não pode sair da cidade que era seu baluarte, o Exército brasileiro não podia ocupar o baluarte inimigo ao ficar preso a seu próprio assédio, a sua própria posição de sitiante.

As forcas caudinas, por se tratar de uma frase feita, entendem-se mais facilmente. A frase feita passou à História como metáfora de derrota inesperada, de rendição humilhante. Alusiva a um episódio da instalação do Império Romano na península itálica, ainda por idos do século IV a.C., a expressão se refere à surpreendente resistência com que os romanos se depararam por parte dos samnitas, na Campânia. Ao atacarem a cidade de Caudium, os romanos foram apanhados desprevenidos pelo inimigo nos desfiladeiros que davam acesso à cidade, sofrendo uma derrota de bom tamanho. Desdobrando a alusão, agrega-se ainda um significado, origem e razão de ser da frase feita: o costume romano de fazer o inimigo vencido desfilar nos triunfos em Roma vergado ao peso do jugo. A mesma palavra latina (furca) significando o desfiladeiro em forma de forquilha e um tipo de forca, forcas caudinas vem a ser a metáfora de uma metáfora. Em Canudos, o revés que a 4 a Expedição sofreu, ao enveredar pelos desfiladeiros do leito seco do Vasa-Barris, no combate de 18 de julho, dá base ao paralelo estabelecido por Euclides.

Estas são menções isoladas, sem maiores ligações, servindo a uma tentativa de esclarecimento da leitura. Nem de longe têm a força de presença da Revolução Francesa, que transcende ao mero nível alusivo. E não foi só para Euclides, mas para toda a geração dele. Por uma curiosa defasagem, os cem anos que vão de 1789 a 1889, datas de instauração da Revolução Francesa e da proclamação da República no Brasil, criam uma série de equívocos. Independentes enquanto ex-colônia, mas imperiais e escravocratas, assim ficamos à margem do movimento geral de emancipação política nas Américas durante esse período, em que os ideais da Revolução Francesa se expandissem em nosso país. A geração de Euclides, - gente que se formou na segunda metade do século XIX, tinha na Revolução Francesa o modelo de liquidação do Antigo Regime - estamental, monarquista e escravocrata.

O jovem Euclides dedicou, aos mais radicais chefes franceses, quatro sonetos, intitulados respectivamente Robespierre, Marat, Danton e Saint-Just. Anos depois, não mais um escolar porém já jornalista militante, escreveu artigos de propaganda da Revolução Francesa (estudados e editados por Olímpio de Sousa Andrade), participando da agitação preparatória da derrubada da monarquia brasileira. E não era só ele; também o Exército, imbuído de positivismo, se acreditava o garante e o realizador da Revolução Francesa no Brasil.

Não é de espantar, portanto, se n'Os Sertões Euclides relata a salva de 21 tiros ao alvorecer, com que as tropas saúdam uma "data nacional", que vem a ser o 14 de julho, dia da tomada da Bastilha, marco da Revolução Francesa. Também é costume na época, entre militares ou não-militares, utilizar-se o democrático tratamento de Cidadão, posto em circulação pelos revolucionários franceses, em nome da igualdade.

Ocorrem a Euclides os exemplos de Brunswick e Monck a propósito de Antonio Conselheiro, também de passagem, quando deseja criticar aqueles que, como ele próprio anteriormente, insistiam em ver Canudos um intento de restauração da monarquia. Quem são estes? Inimigos da revolução, ambos generais restauradores. O Duque de Brunswick, afamado como o melhor chefe militar de seu tempo, comandou a coligação germano-austríaca que tentou liquidar a Revolução Francesa em seus inícios. Todavia, derrotado na Batalha de Valmy em 1792, bateu em retirada, assinalando a desistência dessa primeira fase da reação restauradora do Antigo Regime. Já George Monck, mais conhecido como Duque de Albemarle, teve melhor sorte, pois de fato levou Carlos II ao trono da Inglaterra, após o interregno republicano de Cromwell.

Daí, a lamentar que ao planejador da segunda expedição contra Canudos faltasse o amparo teórico de um Jomini, não vai muita distancia: esse é, depois do famoso Clausewitz, um dos maiores analistas das campanhas napoleônicas em defesa das realizações da Revolução Francesa.

A questão mais espinhosa continua sendo a do paralelo com a Vendéia. De fato, a insurreição que levantou essa região da França contra a Revolução de 1789 torceu a maior parte dos símiles e da reflexão histórica sobre a Guerra de Canudos. O próprio Euclides foi responsável, ao escrever dois artigos intitulados "A nossa Vendéia" para O Estado de S. Paulo. Nesses artigos, escritos antes da viagem a Canudos, Euclides estabelece a comparação entre Revolução Francesa e República brasileira, entre insurreição monarquista contra-revolucionária na França e o levante sertanejo.

Mais tarde, n'Os Sertões, Euclides viria a renegar explicitamente a analogia. Entretanto, nunca conseguiu se livrar dela de todo. Assim é que, até a contragosto, volta a trazê-la a baila, seja para criticá-la, seja para confirmá-la. A crítica almejada, e realizada ao nível das idéias, é insidiosamente minada pela insistência nos símiles. Se faz essa crítica enviesadamente, obliquamente, no trecho final d'O Homem, por outro lado confirma-a quando, páginas e mais páginas adiante, volta a reiterá-la. Então, no fim do Capítulo IV d'A Luta, torna a insistir na semelhança, "malgrado os defeitos do confronto", diz ele. E passa a afirmar que "Canudos era nossa Vendéia", que "o chouan (camponês vendeano) e as charnecas emparelham-se bem como o jagunço e as caatingas". Assim, registra novamente o "mesmo misticismo, gênesis da mesma aspiração política" e as "mesmas ousadias servidas pelas mesmas astúcias, e a mesma natureza adversa". Ao que se saiba, ainda não existe palavra para estabelecer uma identidade mais cabal que o vocábulo mesmo, tão usado nesse trecho.

Já bem adiante, no final do Cap. V da "Quarta Expedição", Euclides vai retomar a comparação, dizendo que eram os jornais que acreditavam nela, ao equipararem os jagunços aos chouans. Menciona a propósito três dos líderes da insurreição da Vendéia -Fontenay, Chatelineau, Charette - os dois últimos ganhando num confronte pejorativo para os canudenses. Pageú é um "bronco", quando comparado com "o facies dominador de Chatelineau" e "João Abade era um Charette de chapéu de couro". Além disso, Macambira, outro chefe canudense, é chamado de Imanus, ser meio fantástico que atuou na revolta da Vendéia: e os apelidos dos jagunços são aproximadamente aos dos vendeanos.

Os usos do exclamativo "Viva a República!" ilustram a presença da Revolução Francesa tanto na idéias de Euclides como no Exército. Era o grito de guerra, cada vez que as tropas saúdam um superior ou arrancam numa investida contra Canudos, essa é oficialmente a exclamação. As ordens do dia emitidas pelos chefes militares na campanha se encerram com igual fórmula. Euclides termina vários de seus telegramas para o jornal com um "Viva a República!" ou com "A República é imortal!"

Utopia guiando a ação histórica? Ilusão mobilizada para minimizar o desempenho que, no fundo, visava preservar o mesmo estado de coisas anterior, só que agora sem rei? De um modo ou de outro, o ideal da Revolução Francesa pairou sobre Euclides e sobre as tropas na Guerra de Canudos.

 

Walnice Nogueira Galvão
(Professora Titular de Literatura Comparada da Universidade de São Paulo)

 

Extraído de: Galvão, Walnice Nogueira. Gatos de outro saco. Ensaios críticos. São Paulo, Brasiliense, 1987

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